William Osler e o ensino da Clínica Médica

William Osler e o ensino da Clínica Médica: a visão de um grande médico e professor.

“Eu não desejo nenhum outro epitáfio… a não ser que ensinei estudantes de Medicina nas enfermarias, pois eu julgo esta de longe a principal e mais útil função que fui chamado a desempenhar” (Aequanimitas; “The Fixed Period”)

“A prática da Medicina é uma arte baseada na ciência”. (Aequanimitas; “Teacher and Student”). “A educação superior tão necessária hoje não é dada na escola, não pode ser comprada em um mercado, mas deve ser talhada em cada um de nós por si mesmo, através da silenciosa influência do caráter sobre o caráter, que não é nunca tão potente como na contemplação das vidas dos seres grandes e bons do passado e de nenhuma forma mais (intensamente) do que pelo“ contato com as divinas e nobres criaturas que já se foram” (Aequanimitas; “Books and Men”).

William Osler foi um eminente clínico e professor, nascido no Canadá em 1849 e criou o departamento de Medicina Interna da Escola de Medicina de John Hopkins que serve de modelo até hoje para inúmeras universidades americanas. O seu carisma pessoal aliado à sua enorme capacidade de produção acadêmica, invulgar cultura médica e humanística, além de suas especiais habilidades didáticas − melhor descritas por seu aluno e biógrafo Harvey Cushing (1) − garantiram-lhe grande sucesso e fama ainda durante a sua produtiva vida.

Unanimemente reconhecido como fonte de inspiração por seus pares e por uma legião de seus discípulos, cabe-nos inquirir como abstrair de seu enorme legado de ensinamentos − presentes em inúmeros artigos, discursos e livros de sua autoria −, que poderiam nos orientar ainda hoje, mesmo passados quase cem anos da sua publicação.

Osler foi indiscutivelmente um grande orador e é na coletânea de seus melhores discursos, por ele publicados em 1904 sob o nome de Aequanamitas (2), que o encontramos na sua melhor forma. Destes e de outras de suas obras e biografias (1-5), extraímos alguns trechos para permitir que próprio leitor julgue o valor e, por conseguinte, o caráter atemporal de seus ensinamentos. Organizaremos a seguir o pensamento deste eminente mestre em algumas áreas específicas, selecionadas de acordo com o que nos parece pertinente para a nossa geração de clínicos, residentes e estudantes de Medicina, tamanha foi a amplitude de sua contribuição.

1) Medicina Geral e Especialidades: Osler sempre incentivou a prática de uma Medicina geral em contraste com a crescente ênfase na especialização que já se fazia sentir nos seus dias.

“Eu gostaria que existisse um outro termo para designar o amplo campo da prática médica que resta após dela extrairmos a cirurgia, a obstetrícia e a ginecologia. Não sendo uma especialidade em si mesma (apesar de englobar pelo menos meia dúzia delas), seus seguidores não podem ser chamados de especialistas, mas recebem sem restrição o belo e velho nome de clínico (internista) em contraste aos generalistas, cirurgiões, obstetras e ginecologistas. Eu ouvi aqueles que expressam o temor de que neste país (CANADÁ????) o campo do clínico propriamente dito esteja ficando cada vez mais restrito e, talvez, isto seja verdade; mas eu reitero (e espero convencê-los) que as oportunidades ainda são grandes, que a colheita é abundante e que os trabalhadores são escassamente suficientes para suprir a demanda”.

Desde o início, gostaria de enfatizar que o estudante da Medicina interna não pode ser um especialista. (Aequanimitas; “Internal Medicine as a Vocation”).

2) Educação médica: é difícil resumir as idéias de Osler em relação a este tópico para o qual tanto contribuiu. Destacam-se, entretanto, sua didática baseada no estudo do doente à beira do leito, entremeada por seu vasto conhecimento da literatura médica de sua época e grande cultura humanística.

“No método de ensino que pode ser chamado de natural, o estudante começa com o paciente, continua com o paciente e termina seus estudos com o paciente, usando livros e aulas como ferramentas, como meios para um fim. O estudante começa, de fato, como um médico, como um observador de máquinas quebradas cuja estrutura e funções usuais lhes são perfeitamente familiares. Ensine-o como observar, dê a ele muitos fatos a serem observados e as lições virão destes mesmos fatos. Para o estudante que está no início, tanto na clínica médica como na cirurgia, é uma regra segura não ensinar sem ter um paciente como texto, pois o melhor ensinamento é aquele veiculado pelo próprio paciente. Toda a arte da Medicina está na observação, como fala o velho ditado, mas para educar os olhos para ver, o ouvido para ouvir e o dedo para sentir demora. Iniciar um homem no caminho correto é tudo o que podemos fazer. Esperamos muito dos estudantes e tentamos ensiná-los demais. Dai a eles bons métodos e um ponto de vista adequado e todos os demais conhecimentos serão acrescidos conforme sua experiência se acumule”. (Aequanimitas; “The Hospital as a College”).

“A perfeita felicidade para o estudante e o professor será alcançada com a abolição das provas, que são obstáculos ofensivos no caminho do verdadeiro estudante”. (Aequanimitas; “After twenty-five years”).

A enorme cultura humanística e médica de Osler foi atingida através de várias atitudes exemplares como: a) leitura sistemática de revistas médicas estrangeiras, compartilhada com seus alunos através da criação de clubes de revistas (“journal clubs”); b) gosto por livros que se intensificou muito à medida que foram passando os anos. Além de ter uma biblioteca que chegou a 5.000 volumes − doada após seu falecimento em 1919 à Escola de Medicina da Universidade de McGill, na qual se graduou − Osler foi também o autor do famoso livro texto de Medicina Interna “Principles and Practice of Medicine”, predecessor do atualmente famoso “Cecil’s

Textbook of Medicine”; c) viagens constantes pelos maiores centros médicos de sua época como Viena, Paris e Londres. Nestas viagens, Osler conheceu os expoentes da Medicina daquele tempo como Virchow, Billroth, Lister etc. De fato, Osler sempre incentivou mudanças institucionais, tendo ele mesmo mudado quatro vezes de instituição durante a sua vida; d) vastos conhecimentos de biologia, anatomia patológica e de fisiologia conseguidos nas salas de autópsia e laboratórios ainda no início de sua carreira, quando ainda ensinava na Universidade McGill.

“A grande universidade tem duas funções: ensinar e pensar” (Aequanimitas: “Teaching and Thinking”).

“É para mim difícil falar do valor de bibliotecas em termos que não pareçam exagerados. Livros têm sido meu deleite nestes trinta anos e deles recebi incontáveis benefícios. Estudar o fenômeno da doença sem livros é navegar em um mar sem mapa, enquanto que estudar em livros sem pacientes é como não ir ao mar. Só um escritor de livros pode apreciar o trabalho dos outros de acordo com seu verdadeiro valor” (Aequanimitas; “Books and Men”).

“Enquanto a Medicina é para ser vossa vocação ou chamado, procureis cultivar também um interesse não vocacional – um passatempo intelectual que vos mantenha em contato com o mundo da arte, das ciências ou das letras. Comeceis cultivando algum interesse diferente do puramente profissional. A dificuldade está na seleção e a escolha será diferente de acordo com vossos gostos e treino. Não importa o que seja – mas tende um hobby fora (de vossa profissão)” (Aequanimitas; “After twenty-five years”).

“Para o clínico geral uma biblioteca bem utilizada é um dos poucos corretivos para a sensibilidade precoce que tão freqüentemente pode acometê-lo. Centrado em si mesmo, autodidata, ele leva uma vida solitária que, a não ser que sua experiência diária seja controlada por uma leitura cuidadosa ou pelo debate no contexto de uma sociedade médica, rapidamente deixa de ter qualquer valor e se torna um mero acúmulo de fatos sem correlação entre si. É admirável como com quão pouca leitura pode um doutor praticar Medicina, mas não é admirável quão mal ele a pode exercer” (Aequanimitas; “Books and Men”).

“Comeces por criar uma biblioteca ao lado do teu leito de dormir e gastes pelo menos meia hora de teu dia em comunhão com os santos da humanidade”(Aequanimitas; “The master word in medicine”).

“Eu desejaria encorajar… em nossos melhores estudantes o hábito de viajar… Há indiscutivelmente uma grande vantagem em estudar com diferentes professores na medida em que o horizonte mental é ampliado e as amizades incrementadas“ (Aequanimitas; “Student Life”).

Dividi vossas atenções igualmente entre os livros e os homens… Acostumai-vos a testar todos os tipos de problemas e afirmativas presentes nos livros por si mesmos e assumam o mínimo baseados em confiança… A força do estudante de homens é viajar – para estudar homens, seus hábitos, caráter, modo de vida, seu comportamento sob várias condições, seus vícios, virtudes e peculiaridades. Começai com uma observação cuidadosa de vossos colegas estudantes e vossos professores, então, cada paciente que vireis é uma lição muito maior do que a doença da qual ele padece. Misturai-vos o mais que vos for possível com o mundo externo e apreendei seus caminhos” (Aequanimitas; “Student Life”).

“Vós sereis membros de uma educada e também liberal profissão e, quanto mais olhareis para a vida fora do estreito círculo do vosso trabalho, melhor equipados estareis para a luta” (Aequanimitas; “After twenty-five years”).

Além de sua enorme cultura, uma das principais características que fizeram de Osler um professor exemplar foi a importância que atribuía à proximidade entre professor e aluno. Osler rotineiramente recebia em sua casa nos sábados à noite seus alunos e, ao redor de bolos e chá, lhes falava de temas relacionados geralmente às áreas humanas como, por exemplo, a discussão de uma obra literária etc. Destacava-se sempre nestes encontros a sua preocupação com aspectos pessoais daqueles sob sua orientação como, por exemplo, que livros estavam lendo no momento, como aproveitar melhor o seu tempo etc. A seguir, destacamos alguns de seus conselhos aos jovens extraídos de seus discursos mais famosos:

“Não penseis no amanhã, vivei não no passado ou no futuro, mas deixem que o trabalho de cada dia absorva completamente vossas energias e satisfaçam vossas maiores ambições” (Aequanimitas; “After twenty-five years”).

“As demandas irregulares e incessantes sofridas pelo médico ocupado tornam difícil reter (uma abordagem sistemática). Os homens que são sistemáticos, alocando determinados períodos do dia a tarefas específicas, conseguem muito, inclusive ter algum lazer” (Aequanimitas; “Teacher and Student”).

“Aprendas a aceitar em silêncio os pequenos agravos, cultives o dom da taciturnidade e consumas tua própria fumaça com uma dose extra de trabalho árduo, para que aqueles que te rodeiam não se incomodem com a poeira e com acalmar tuas reclamações. Mais do que qualquer outro, o médico pode ilustrar… que não estamos aqui para captarmos da vida tudo o que pudermos, mas para tentar fazer a vida dos outros mais feliz” (Aequanimitas; “The Master Word in Medicine”).

“Há perigos [relacionados com o excesso de trabalho]… [como a] má saúde… Há três requisitos para a salvação temporal – comida, sono e uma disposição agradável. Adicione a estes [requisitos] exercício adequado e terás os meios pelos quais uma boa saúde pode ser mantida. Não que a saúde deva ser um assunto para tua perpétua preocupação, mas hábitos que favoreçam um corpo sadio estimulam uma mente sã, na qual a alegria de viver e de trabalhar se amalgamam em harmonia” (Aequanimitas; “The Master Word in Medicine”).

“Comeces com a convicção de que a verdade absoluta é difícil de ser atingida em assuntos relacionados a criaturas humanas saudáveis ou doentes, que falhas na observação são inevitáveis mesmo para os docentes mais bem treinados e que erros de julgamento devem ocorrer na prática de uma arte que consiste principalmente na ponderação de probabilidades – comeces, eu digo, com esta atitude em tua mente e os erros serão reconhecidos e lamentados. Entretanto, ao invés do lento processo de auto-decepção, acoplado a uma crescente inabilidade para reconhecer a verdade, extrairás de teus erros as verdadeiras lições que te permitirão evitar sua repetição” (Aequanimitas; “Teacher and Student”).

“O perigo na vida deste homem (médico de sucesso) vem com a prosperidade. Ele está seguro durante o dia de trabalho árduo enquanto ainda está galgando a montanha, mas, quando o sucesso é atingido, com ele advêm as tentações às quais muitos sucumbem. A política tem sido a ruína de muitos médicos do interior e frequentemente dos melhores” (Aequanimitas; “The Student Life”).

“Nada vai sustentar-te mais fortemente do que o poder de reconhecer na tua monótona rotina, como se pode talvez julgá-la, a verdadeira poesia da vida – a poesia do lugar comum, do homem do povo, da cansada mulher trabalhadora, de seus amores, alegrias, dores e tristezas” (Aequanimitas; “The Student Life”).

3) Terapêutica Clínica: considerado por muitos como cético, Osler foi um advogado veemente da utilização racional e parcimoniosa dos medicamentos que lhe eram disponíveis. Valorizava também sobremaneira o valor da fé do paciente no processo terapêutico como um fator facilitador e, às vezes, decisivo do seu sucesso.

“A prática da Medicina é uma arte, não um comércio; uma vocação, não um negócio; uma vocação através da qual teu coração será exercitado assim como tua cabeça. Freqüentemente, a melhor parte do teu trabalho nada terá a ver com (a prescrição) de poções e fórmulas, mas com o exercício de uma influência do forte

sobre o fraco, do justo sobre o mau, do sábio sobre o tolo” (Aequanimitas; “The Master Word in Medicine”).

“Um ou todos de vós se defrontarão com o sofrimento de qualquer estudante desta geração que, cedo ou tarde, tenta misturar as águas da ciência com o óleo da fé. Vós podeis usufruir grande parte de ambas se pudereis apenas mantê-las separadas. O problema ocorre ao tentareis misturá-las. Como clínicos, ireis necessitar de toda a fé que pudéreis carregar e, enquanto não seja do tipo convencional [de fé], mas sim expressa em vossas vidas em vez de vossos lábios, este tipo [de fé] não é má” (Aequanimitas; “The Master Word in Medicine”).

“A terceira notável característica da terapêutica moderna é o retorno aos métodos psíquicos de cura pelos quais a fé em algo é sugerida ao paciente. Apesar de tudo, a fé é o grande nivelador da vida. Sem ela, o homem não pode fazer nada. Com ela, mesmo com um pequeno fragmento, como uma semente de mostarda, todas as coisas lhe são possíveis. A fé está em nós, fé em nossas drogas e métodos, é a grande mercadoria à venda em nossa profissão. Em um prato da balança, coloques todas as farmacopéias do mundo… e, na outra, ponhas a simples fé e os pesados volumes (serão por ela superados). [A fé] é o ouro potável, a marca do sucesso na Medicina. Como disse Galeno, confiança e esperança melhoram mais que a Medicina – “Ele cura mais a quem mais n’Ele confia”… Enquanto nós médicos não apreciamos ou [até] ignoramos nossas próprias curas efetivadas pela fé, somos muito sensíveis àquelas promovidas por profissionais não pertinentes às nossas fileiras. Nós nunca tivemos nem teremos o monopólio sobre esta panacéia que é aberta a todos, livre como o sol, e que pode fazer de qualquer um… “um bom médico das graças da natureza”. Fé em deuses ou em santos cura a um [doente], fé em pequenas pílulas a outro… Em todos os tempos, a reza com fé curou doentes e a atitude mental do suplicante parece ser de maior conseqüência do que os poderes aos quais a reza é dirigida… Fé é a comodidade mais preciosa sem a qual estaríamos em má situação (Aequanimitas; “Medicine in the Nineteen Century”).

“A falta de treino pessoal sistemático nos métodos do reconhecimento da doença leva à má aplicação de remédios, a longos tratamentos quando o tratamento é inútil e, assim, diretamente à desconfiança em nossos métodos que pode nos colocar, aos olhos do público, no mesmo nível dos empíricos e charlatões” (Aequanimitas; “Chauvinism in Medicine”).

4) Envolvimento com sociedades médicas: Osler sempre enfatizou o valor da participação dos médicos em sociedades como forma de incentivar o contato científico e social entre a classe para combater, desta forma, o isolamento ao qual a estafante prática cotidiana da Medicina pode conduzir o médico em relação aos colegas de sua própria comunidade, além de fomentar e fortalecer a amizade e coleguismo dentro da classe médica.

“Nenhuma classe de homens necessita de debate tanto quanto os médicos; nenhuma classe tem menos. A rotina diária de um ocupado médico tende a desenvolver nele o egoísmo intenso para o qual não há antídoto. Os infortúnios são esquecidos e os erros freqüentemente enterrados. Dez anos de trabalho tendem a fazer de um homem um ser sensível, dogmático, intolerante para correções e abominavelmente centrado em si mesmo. Para esta atitude mental a sociedade médica é o melhor corretivo e um homem perde muito de sua educação se não é criticado pelos seus colegas em discussões ou debates…” (Apud Cushing, H. The Life of Sir William Osler, pg. 447).

“Nenhum pecado vai tão facilmente te assolar como a falta de caridade em relação ao teu irmão médico… Não há razão para discórdia e discordância e a única maneira para evitar este problema é ter duas simples regras. Desde o dia em que iniciares a clinicar, não escutes, sob nenhum pretexto, uma história contada em detrimento de um irmão médico. Quando uma disputa ou problema aparecer, vais, cedo ou tarde do dia, e fales francamente sobre o problema (com o outro colega), desta forma, poderás ganhar um irmão e um amigo” (Aequanimitas; “The Master Word in Medicine”).

5) Papel social do médico: Osler julgava que aos médicos cabia também o papel de educador e de advogado de causas relacionadas à saúde comunitária. Neste sentido, Osler lutou pela instituição de medidas de saneamento básico em Baltimore (EUA), como forma de combate à febre tifóide (1).

Referências:

1) Harvey Cushing. The Life of Sir William Osler. Oxford University Press. London. Second Edition,1940.

2) Sir William Osler. Aequanimitas and Other Papers that Have Stood the Test of Time. W.W. Norton & Co. INC. New York, 1963.

3) Sir William Osler. An Alabama Student and Other Biographical Assays. Oxford University Press. London. Second Edition, 1926.

4) Charles S. Bryan. Osler: Inspirations from a Great Physician. Oxford University Press. New York. First Edition, 1997.

5) Raul Marino Jr. Osler: o Moderno Hipócrates. CLR Baliero Editores Ltda. São Paulo, Primeira Edição, 1999

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