Conselhos para um jovem médico – Capítulo 5

ESTUDANDO A PARTIR DE ARTIGOS CIENTÍFICOS

“Comeces com a convicção que a verdade absoluta é difícil de ser atingida em assuntos relacionados a criaturas humanas saudáveis ou doentes, que falhas na observação são inevitáveis mesmo para os docentes mais bem treinados e que erros de julgamento devem ocorrer na prática de uma arte que consiste principalmente na ponderação de probabilidades – comeces, eu digo, com esta atitude em tua mente e os erros serão reconhecidos e lamentados. Entretanto, ao invés do lento processo de auto-decepção, acoplado a uma crescente inabilidade para reconhecer a verdade, extrairás de teus erros as verdadeiras lições que te permitirão evitar sua repetição”. (William Osler; Aequanimitas; “Teacher and student”).

Como vimos nos capítulos anteriores, a carreira médica é muito ampla podendo até acomodar vários tipos de aptidão. Entretanto, de comum entre todas as possibilidades de desenvolvimento pessoal dentro da carreira está o estudo que deve ser contínuo e, se possível sistemático, por toda a vida do médico.

Além de consultar capítulos de livros, principalmente no início da carreira, o estudante e jovem médico terão que se habituar a ler artigos científicos presentes em revistas médicas que constituem a base do conhecimento médico e sobre os quais se baseiam os capítulos de livro.

Artigos científicos e resumos dos mesmos apresentados em congressos serão as principais fontes confiáveis de atualização do conhecimento médico para a maioria de nós. Poder ler artigos científicos e compreendê-los nos propicia acesso irrestrito e em primeira mão a novos dados recém obtidos nos melhores e mais confiáveis laboratórios e hospitais do mundo.

Por estas razões, julguei importante descrever alguns princípios neste capítulo de como o conhecimento médico evolui para que você entenda a importância dos artigos científicos como forma de veiculação objetiva e confiável de novas descobertas para as comunidades científica e médica de todo o mundo.

Artigos científicos, a meu ver, são os tijolos com os quais se dá a construção contínua do conhecimento médico. Ergue-se andar após andar de forma interminável, enquanto há sempre também trabalho de renovação nas bases do edifício. Portanto, enquanto o conhecimento aumenta em extensão, há sempre também uma reformulação contínua das teorias que davam base à maneira de entender científicamente os fatos, até que novos achados científicos as tornem insustentáveis por contradizer seus pressupostos ou conclusões. Assim, cria-se uma tensão no meio científico ao se derrubar teorias antes vigentes. Desta forma, confirmados os achados contraditórios por outros pesquisadores, teorias antes aceitas devem ser reformuladas continuamente para lidar com os novos dados que as contradizem. Uma nova teoria, então, surge para explicar estes novos dados, substituindo assim a teoria velha, mas dela emprestando, todavia, alguns pontos não contrariados pelos novos achados.

Esse contínuo processo de reformulação das teorias pelos achados que paulatinamente vão sendo publicados cria um saudável e contínuo debate científico com tensões que antecedem as reformulações teóricas entremeadas por períodos de estabilidade quando novos dados corroboram ao invés de derrubar as teorias vigentes. Assim que novos dados contraditórios surgirem e forem reproduzidos e aceitos pela comunidade científica, nova tensão e reformulação teórica ocorrerão e assim o ciclo científico vai se repetindo. Este processo dinâmico foi descrito magnificamente pelo filósofo da ciência Kuhn em seu livro “A estrutura das revoluções científicas”.

Um outro filósofo da ciência, Karl Popper em seu livro “a lógica da descoberta científica”, para definir o que seria um conhecimento científico, propôs o critério da “falsificabilidade”. Segundo Popper, uma teoria que não é sujeita a ser refutada, que não pode potencialmente ser provada como falsa (falsificável), não seria científica. Percebamos, assim, que se uma hipótese não puder ser nunca refutada por novos dados, ela pertence ao domínio da fé e não da ciência.

As teorias de Kuhn e Popper são fundamentais para entendermos a evolução das teorias científicas no campo da medicina. Curiosamente, estas mesmas teorias são utilizadas, todos os dias, ao examinarmos doentes e propormos diagnósticos e tratamentos. Poderíamos entender um diagnóstico como uma teoria que pode ser refutada a qualquer momento por um exame complementar específico que contradiga nossa hipótese inicial que, por ser falsificável, é substituída por uma outra hipótese diagnóstica que, por sua vez, poderá ou não ser confirmada por novos testes.

Muitas vezes, enquanto estudava medicina, me perguntava para que ler um artigo científico que tratava de uma minúcia de um tema que ainda não dominava. Achava que ler um capítulo de livro seria muito mais proveitoso. Apesar de não estar errado no tocante a um melhor aproveitamento do tempo de quem nada sabe sobre um assunto, o que devemos aprender na faculdade, a meu ver, é como ler e criticar artigos científicos em geral. É nestes artigos que se baseiam as afirmações contidas nos capítulos dos livros que estudamos. Sem saber como um artigo é escrito, como os dados nele presentes são coletados e analisados e quais são as suas limitações, a leitura do capítulo que cita estes artigos é uma aceitação quase que dogmática de afirmações que podem não mais ser verdadeiras, por já terem sido contraditas, como vimos acima. Sabendo analisar artigos científicos, portanto, aproveitaremos melhor o conhecimento presente nos capítulos dos livros que leremos e nas aulas e palestras que assistiremos durante toda a nossa vida profissional.

Nos próximos capítulos o leitor encontrará informações acerca dos principais tipos de artigos científicos, como são estruturados e como procurá-los e analisá-los criticamente de forma a incorporá-los de forma útil ao seu estudo.

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